Notícias
19 Janeiro, 2022
[Encontros com o Património]
O marmóreo divino e imperial: entre a chama dos deuses e a luta pelo poder e pela imagem dos imperadores
Na segunda sessão do “Ciclo de Encontros com o Património”, no âmbito das conversas no museu” – uma parceria entre a Fundação Bracara Augusta, o Museu de Arqueologia D. Diogo de Sousa e a Direção Regional de Cultura do Norte, foram apreciadas diversas peças escultóricas da doação Bühler-Brockhaus. O Professor Rui Morais, da FLUPorto, que mais uma vez dinamizou brilhantemente a sessão, começou por abordar um busto de Trajano, o primeiro imperador não itálico, nascido na Península Ibérica, mais concretamente na antiga província da Bética, naquela que hoje é a Andaluzia. Trata-se de um retrato que exalta as qualidades humanas e que conserva a expressão da heroicidade militar do personagem, bem na esteira da prática de divulgação dos imperadores que irá prosperar em todo o período imperial. Ao invés do busto de Augusto, reproduzido na sua eterna juventude, Trajano é aqui retratado como um adulto sem idade. Apesar do desgaste, ainda se conserva a representação idealizada e heroica de Trajano, tal como o retratou Plínio-o-Jovem em 100 d.C. (Panegírico de Trajano, 4): “A sua alegria não diminui em nada a sua gravidade, a sua simplicidade da sua autoridade, a sua bondade da sua majestade”.
Percorrendo as obras de arte da coleção Bühler-Brockhaus, foram destacadas outras esculturas em mármore, tais como, um torso com couraça de tipo militar. O Torso Thoracato, é muito provável que retrate uma divindade com carácter militar do panteão greco-romano, cultuada num larário de ambiente doméstico, ou nalgum lugar de culto. As características acima descritas permitem enquadrar este exemplar no terceiro quartel do século II, por volta de 150 a 175 d.C., no contexto das esculturas thoracatas antoninianas de estilo helenístico frequentes no ocidente do Império. Os Romanos herdaram o desenho das esculturas thocacatas dos gregos. As dos soldados em batalha eram praticamente lisas, enquanto as usadas nas paradas triunfais e noutras cerimónias militares eram mais elaboradas. As representações thoracatas estão presentes na estatuária romana, incluindo estelas e aras funerárias, frisos e relevos, sarcófagos, trofeus, bustos e esculturas. Seguidamente Rui Morais considerou três estátuas de divindades femininas, que ilustram, respetivamente, a deusa da caça, uma Musa inspiradora das artes, e uma estátua monumental de mulher sentada, símbolo da modéstia, da virtude e da castidade. Artémis conheceu uma grande popularidade no panteão das representações clássicas de deuses e heróis. Apesar da sua fragmentação, a comparação com outros exemplares indica que a deusa transportaria um arco na mão esquerda e na mão direita levantava a seta antes de ser lançada. Seguidamente, considerando a estátua de uma Musa patente na coleção, esta surge-nos representada de pé. A dimensão da escultura, menor do que o tamanho real, sugere tratar-se de uma cópia de um original grego desconhecido, provavelmente do século IV a.C., mas a qualidade artística desta réplica romana indica-nos ser proveniente de uma boa oficina. As representações escultóricas de Musas, a inspiração para artistas e escritores, foram muito populares no período Helenístico, especialmente a partir do famoso santuário a elas dedicado em Alexandria, o Mouseion, fundado por Ptolomeu I (305-283/82 a.C.). Os romanos irão também adotar esta admiração e exibiriam muitas cópias de exemplares como estes nos banhos, teatros, bibliotecas e villae. A sessão prosseguiu com a análise da estátua monumental de Tipo Pudicitia ou mulher sentada com os seus atributos, proveniente de uma cidade antiga na Turquia. Trata-se de um tipo de escultura amplamente difundida inspirada num original helenístico da Ásia Menor do século III a.C. e que representa, como se referiu, a modéstia, a virtude e a castidade. As dimensões monumentais da escultura sugerem que poderia ter feito parte de um monumento público ou de uma tumba monumental.
A sessão terminou com a apresentação de duas pequenas esculturas em mármore, que ilustram o tema de um rapaz em luta com um ganso, e do imperador Cómodo na pele de jovem Hércules, lutando contra duas serpentes. A primeira trata-se de uma réplica de época romana da famosa escultura helenística atribuída a Boethos da Calcedónia, referida por Plínio na sua História Natural (XXXIV, 84). A escultura teve grande sucesso em época romana, tendo chegado até nós mais de uma dezena de exemplares fragmentados, a maior parte encontradas em Roma e na área circundante. A segunda, e última peça abordada na sessão, revela-nos um género especialmente usado pelos imperadores, que incorporava os atributos de deuses e outras personagens da mitologia greco-romana. A partir de meados a finais do século II estas passam a ser comuns. No caso vemos o imperador configurado em Hércules, espécie de ideal propagandístico dos imperadores, especialmente aqueles que aspiravam persuadir os outros da sua deificação.
* Hoje no Suplemento de Cultura do Diário do Minho